Regressão Salarial e Inflação de Ativos
Análise do economista Ranulfo Vidigal
Importantes economistas da corrente heterodoxa, ao interpretar o quadro recente da economia mundial defendem a tese central, segundo a qual com a globalização da economia mundial, desde os anos 1980 vivemos uma radical alteração no modelo de crescimento e desenvolvimento da economia norte-americana e demais países centrais do capitalismo. O antigo modelo macroeconômico pré-1980 centrado em pleno emprego, salários reajustados de acordo com a produtividade do trabalho, regulamentação financeira e de incentivos aos investimentos produtivos foi substituído, no pós-1980 pelo modelo macroeconômico da globalização neoliberal com estagnação do salário real, desemprego e demanda agregada puxada por “bolhas” financeiras.
O neoliberalismo é uma doutrina baseada no individualismo metodológico e supõe uma economia tendendo sempre para o equilíbrio natural, desconsidera os fatos históricos e parte do princípio da maximização do lucro empresarial e da satisfação do consumidor.
Um dos componentes atuais da demanda agregada no EUA tem sido a inflação de ativos, que compensa a queda histórica nos rendimentos do trabalho. A economia norte-americana tem necessitado, recorrentemente, de bolhas financeiras e bolhas no mercado de hipotecas para garantir tanto crescimento como o pleno emprego. De fato, há uma combinação perversa entre o modelo de crescimento doméstico americano e seu receituário de expansão global, principalmente para os países da periferia, como é o caso do Brasil, ainda preso na armadilha das metas de inflação, superávit primário, câmbio flutuante e, conseqüentemente, baixo crescimento. O novo modelo que privilegiou a componente financeira da acumulação de capital gerou uma crescente instabilidade macro-econômica no mundo como um todo.
Embora sejam plenamente reconhecidos, os fatores microeconômicos da atual crise, o que se observa no pensamento conservador é uma grande resistência, tanto entre economistas como entre políticos em admitir as causas macroeconômicas da crise. O discurso microeconômico sobre falhas meramente pontuais dos mercados desvia a atenção em relação aos mecanismos estruturais que são de difícil correção e que exigem mudanças mais radicais. O discurso micro, por outro lado, não questiona os assuntos mais amplos do atual modelo de crescimento econômico, que alarga as disparidades de renda entre indivíduos e nações. Organizações supra-estatais como o FMI e o Banco Mundial também se recusam veementemente a questionar os problemas estruturais.
A grande transformação de caráter ideológico ocorreu há cerca de trinta anos. Ali, o modelo macro que reinou depois da segunda guerra mundial até o fim dos anos 1970, que teve como princípios básicos as políticas de pleno emprego, que garantiam que os salários fossem reajustados de acordo com a produtividade do trabalho esgotou-se. O modelo implementado após 1980 quebrou o compromisso com o pleno emprego, desconectou o crescimento dos salários da produtividade do trabalho e, por fim, se assentou na expansão do crédito e das dívidas pública e privada para estimular a demanda agregada. A expansão do crédito e das dívidas, por seu turno, produziu “bolhas de ativos”, e conseqüentemente aumentos na demanda agregada, apesar da estagnação dos rendimentos do trabalho.
O boom financeiro acoplado à menor regulação e às inovações financeiras veio associado a elevados níveis de alavancagem bancária e expansão da securitização de ativos. Em paralelo, os trabalhadores continuaram sendo, pressionados pela flexibilização do mercado de trabalho, pelo deslocamento de empresas norte-americanas para outros continentes e pelas políticas governamentais que tenderam a diminuir o estado de bem-estar social originalmente criado após a crise de 1929. As recentes manifestações na Itália, Portugal, Grécia e Espanha confirmam esta situação.
O modelo neoliberal do chamado consenso de Washington foi exportado para outros países, através do FMI e do Banco Mundial. Em grande medida, tais políticas favoreceram a precarização das condições de trabalho no mundo afora. O resultado foi a regressão das condições daqueles que ainda encontram trabalho. No Brasil, apesar do forte incremento na empregabilidade, o mercado formal de trabalho atinge tão somente metade da força de trabalho disposta a buscar uma atividade produtiva. Por outro lado, enquanto a renda média da parcela 1% mais rica da sociedade (o topo da pirâmide) atingir 16 mil reais, a renda média do brasileiro comum é de apenas 1.300 reais.
O controle da inflação dos bens de consumo foi colocado à frente da garantia de pleno emprego. E o “controle da inflação” certamente não incorporou o controle da inflação de ativos. Ao contrário, as taxas de crescimento do PIB estiveram correlacionadas positivamente com a taxa de inflação dos ativos imobiliários. No mundo em crise, de fato, ainda estamos presenciando um processo intenso de transferência da renda dos salários para os lucros. Ainda mais, porque a tênue recuperação atual, lastreada em juros nominais muito baixos e grande oferta de liquidez, se deu novamente com inflação de ativos, alto desemprego e tentativa de desmonte do walfare state na Europa.
Por fim, temos as economias subdesenvolvidas de nosso continente que se caracterizam por grandes disparidades de renda, alta informalidade no mercado de trabalho, atraso tecnológico, baixo grau de industrialização, exportação de produtos primários e pequena participação nos processos decisórios dos organismos internacionais econômicos. O necessário reposicionamento, diante do novo cenário que se avizinha na fase de superação da atual crise internacional exigirá do Brasil uma estratégia tecnológica, energético-ambiental, econômica e política que permita romper com este paradigma e garanta maior homogeneidade de renda, desenvolvimento sustentável, maior produtividade, diversificação da produção e distribuição de renda e riqueza.
Ranulfo Vidigal – economista, mestre e doutorando em políticas públicas, estratégias e desenvolvimento pelo Instituto de Economia da UFRJ.
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