Jornal Estado de São Paulo
GRANDES OBRAS DEIXAM COMO HERANÇA PROGRESSO E CAOS
Altamira, no Pará,
e Porto Velho, em Rondônia, se transformam com a construção de usinas
hidrelétricas
Renée Pereira (texto) e Sergio Castro (fotos)
A construção de grandes obras sempre
transforma as cidades que estão no seu entorno, para o bem ou para o mal. Sem
planejamento adequado, todos os ganhos econômicos conseguidos com o aumento da
população, consumo e renda se transformam em desequilíbrios difíceis de serem
revertidos. Quando a obra é concluída, sobram problemas. O nível de desemprego
aumenta num cenário quase sempre de índices de criminalidade elevados. Os
comerciantes fecham os estabelecimentos e correm para a próxima oportunidade.
Na reportagem deste domingo,
relatamos o dia a dia de Altamira, que vive o auge da construção da
Hidrelétrica de Belo Monte, e Porto Velho, que começa a sentir a ressaca do fim
das usinas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira. Os dois empreendimentos já
foram feitos sob as regras de exigência de condicionantes para amenizar os
impactos ambientais e sociais.
As cidades têm aproveitado para obter
melhorias em serviços essenciais para a população, como saneamento básico,
construção de escolas e hospitais. A ideia é conseguir que os empreendimentos
deixem um legado importante para a população, já que ao fim das obras o impacto
nas finanças da região é elevado e certo. O objetivo é evitar que casos
antigos, como o do antigo Projeto Jari e Tucuruí, se repitam.
O Projeto Jari foi idealizado pelo
americano Daniel Keith Ludwig, que sonhou construir um império na Amazônia com
atividades voltadas à exploração de celulose, pecuária e agricultura. Iniciado
na década de 60, o projeto (que vingou apenas na parte da celulose) criou duas
cidades opostas. Do lado do Amapá, a cidade dos trabalhadores virou uma imensa
favela sobre palafitas, já considerada a maior do mundo. Do outro lado, no
Pará, o distrito de Monte Dourado é uma comunidade planejada, nos moldes da
classe média americana. Em Tucuruí, depois que a construção da usina acabou, a
economia minguou e a população ficou sem emprego e renda.
COM BELO MONTE, ALTAMIRA TEM DIAS DE CIDADE GRANDE
Desde que a bilionária
Hidrelétrica de Belo Monte, no oeste do Pará, começou a ser construída,
Altamira vive dias de cidade grande. O trânsito é caótico, a população não para
de crescer e os índices de criminalidade aumentam. Por outro lado, o município
ganhou novas redes de varejo, obras de infraestrutura e novos projetos
comerciais, como shopping centers. Por enquanto, a população só consegue ver a
parte ruim. Se antes a opinião sobre a usina era dividida, hoje a maioria se
diz contra.
A principal reclamação é com os
constantes congestionamentos e com o aumento da criminalidade. Em menos de três
anos, a frota de automóveis cresceu 83%. A de motocicletas, 113%. A cidade tem
sido campeã nacional na comercialização de motos. Apenas numa loja são vendidas
entre 130 e 150 unidades por mês - número que ajuda no aumento de acidentes no
trânsito. Nos últimos três meses, duas mortes de ciclistas chocaram a cidade.
Uma delas ocorreu na Avenida Djalma Dutra, principal rua de Altamira, onde a
bicicleta da vítima está pendurada no poste do semáforo, como forma de
protesto.
“Só estamos vendo os malefícios da
obra. Aqui era tranquilo. Agora vira e mexe uma pessoa morre atropelada”,
afirma o guarda de trânsito Mizael Carneiro. Outro problema causado pelo
aumento da frota é a falta de lugar para estacionar. Sem espaço disponível nas
ruas estreitas da cidade, os raríssimos estacionamentos cobram preço
semelhantes aos de São Paulo. Uma hora custa R$ 10. Um mês, R$ 390. “Tanto
transtorno não compensa”, diz Ocleci Polla, dona de uma loja de chocolates.
Além do aumento de carros e motos nas
ruas, os congestionamentos têm sido causados por obras de saneamento, que
interditam várias ruas. Como parte do Projeto Básico Ambiental, a Norte Energia
- concessionária de Belo Monte - está construindo 220 quilômetros (km) de rede
de esgoto e 170 km de tubulações de água potável. Até agora foram concluídos
134 km de esgotamento sanitário e 108 km de rede de água. A oferta de água
potável na cidade será reforçada com a construção de oito reservatórios.
Hoje Altamira não tem sistema de
coleta e de tratamento de esgoto e o atendimento de água encanada é restrito a
14% do município. A obra colocará a cidade entre as poucas do Estado com
saneamento básico. Mas, como nem tudo pode ser perfeito, a grande polêmica do
momento é quem fará a ligação entre residências e rede, diz o empresário Waldir
Antonio Narzetti.
Como as casas foram construídas sem
essa infraestrutura, o investimento para se conectar ao sistema deve ficar por
volta de R$ 4 mil - dinheiro que muitos moradores não têm. A Norte Energia fará
todo o investimento da rede e, quando concluída, entregará para a prefeitura.
Mas, segundo Narzetti, a discussão é que a responsável pelo saneamento da
cidade é a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), que não consegue resolver
nem os problemas de vazamento.
O empresário conta que outro
investimento de extrema importância para a cidade já tem sentido os efeitos da
má gestão. A Norte Energia construiu um aterro sanitário e entregou para a
prefeitura. “Mas já está dando problema, pois não tem recebido o tratamento
adequado.”
Narzetti questiona a lentidão dos
investimentos da Norte Energia, mas reconhece que se a usina não estivesse em
construção a cidade nunca teria saneamento básico ou asfalto no trecho urbano
da Transamazônica. “Espero que todo o transtorno de hoje possa ser traduzido em
melhorias no futuro.” A chegada da hidrelétrica transformou a cidade num
canteiro de obras. Os outdoors anunciam venda de espaços em galerias,
construção de shoppings, universidades e bairros planejados. Hoje há entre 8 e
10 loteamentos sendo vendidos. Altamira ganhou até um hotel em formato de
castelo.
Por outro lado, o aumento do número
de trabalhadores na hidrelétrica - são 25 mil no total - e novos moradores
impulsionaram os índices de criminalidade. O superintendente regional da
Polícia Civil, Cristiano Marcelo do Nascimento, conta que, de 2010 para cá, o
número de homicídios cresceu 61% e o de estupros, 66%. O consumo de drogas
também subiu. “Em 2010, 22 traficantes foram presos; e em 2013, 178. Neste ano
deve passar de 200.” O delegado diz que 90% da droga consumida é crack. “Um
grama de cocaína custa R$ 70. É caro para a população local.”
MORADORES DEIXAM PALAFITAS E OCUPAM NOVAS CASAS DE
60 M²
Loteamento fica mais distante, mas moradores estão livres dos riscos
provocados pelo lixo espalhado, esgoto a céu aberto e constantes inundações
ALTAMIRA - Foram 15 anos de muitas
noites em abrigos, de móveis perdidos pela cheia do Rio Xingu e medo de perder
a vida. “Todo inverno era a mesma coisa. A água subia 2,4 metros e tinha de
sair correndo de casa”, lembra Eduardo Barbosa da Silva, de 56 anos. Há três
meses, os dias de agruras vividos nas palafitas de Altamira terminaram e,
enfim, ele tem uma casa de verdade para morar com a mulher e os filhos. “O
conforto que temos aqui nem se compara com a vida que tínhamos nas palafitas.”
O imóvel faz parte do Projeto Básico
Ambiental da Hidrelétrica de Belo Monte. Todas as palafitas (casas de madeira
construídas sobre estacas em áreas que são alagadas na época de chuvas) de
Altamira serão destruídas e os moradores deslocados para as 4.100 casas em
cinco novos bairros que estão sendo construídos pela Norte Energia, empresa que
detém a concessão da usina.
Silva se mudou para o bairro Jatobá,
o primeiro a ser entregue pela companhia, que já tem 229 famílias. São 1.235
residências, todas no mesmo formato. As casas têm 60 metros quadrados (m²), com
três quartos, sala, cozinha e banheiro num terreno de 300m². Para diferenciar,
cada morador escolheu a cor que queria para a frente da residência. A de Silva
é azul.
Ao contrário das palafitas, que ficam
próximas da região central da cidade, os novos bairros são mais afastados -
cerca de 15 minutos do centro. O trajeto até Jatobá é ruim, com ruas de terra e
esburacadas. Mas, no bairro, as vias são amplas e pavimentadas. O melhor de
tudo, no entanto, é que os moradores estão livres dos riscos que as palafitas
representavam, com lixo espalhado por todo lado, esgoto a céu aberto e
constantes inundações.
“Aqui é longe, mas as crianças podem
brincar sossegadas”, afirma Benigna Rabelo Dutra, de 57 anos, que passou boa
parte da vida na zona rural. Para escapar da malária que ameaçava a saúde dos
filhos, mudou-se para a cidade e foi viver num assentamento. Ali, teve de
conviver com as constantes enchentes a cada inverno. Com seis filhos e 24
netos, ela banca sozinha as seis pessoas que moram na nova casa. Sobrevive da
aposentadoria e da venda de chopp, mas conhecido como geladinho ou chup-chup no
Sudeste.
Apesar das dificuldades, ela mostra
com orgulho as aquisições e melhorias feitas no imóvel. Na sala, o sofá e a
mesa são forrados com tecidos verdes, trocados toda semana. O rack e a TV de 42
polegadas foram adquiridos recentemente. “Antes não dava para fazer nada, pois
a cada chuva corríamos o risco de perder tudo.”
No fundo da casa, ela construiu uma
cozinha ampla, onde só falta colocar as “lajotas”. “E ainda vai ter uma
churrasqueira, que acabei de comprar.” Silva também tem planos de ampliar o
imóvel. “Quero construir mais dois quartos, uma cozinha e fazer muro em volta
de toda a casa”, diz ele, que recebe um salário mínimo do INSS, depois que
perdeu uma perna. “Não é muito, mas graças a Deus me ajuda bastante.”
À espera da casa nova. Enquanto
Benigna e Silva festejam a vida nova, outros esperam ansiosos para deixar de
vez as palafitas. Francisca do Socorro das Chagas ainda não faz ideia de quando
vai mudar. Sua casa, no entanto, parece não aguentar muito tempo. Construída à
beira de um córrego, a casa está tombada para um lado e as pontes de acesso com
as tábuas soltas, um perigo para as crianças que transitam sem parar pelo
local. “Quero mudar logo, mas ninguém diz quando será. A única coisa que sei é
que iremos para o bairro São Joaquim.”
A filha de Maria Aparecida Silva está
prestes a fazer a mudança, também para o São Joaquim. Durante a visita da
reportagem, sua filha tinha ido olhar a casa nova. “Minha neta chora toda vez
que vê um vizinho mudar. Ela sempre diz que não dá para brincar aqui. De um lado
corre o risco de cair na água, do outro pode ser atropelada pelos carros.”
Naquele dia, o barraco da vizinha que havia acabado de mudar estava sendo
desmontado. As empresas responsáveis pela demolição contam que, se deixarem um
dia o barraco vazio, no dia seguinte aparece alguém para ocupar. “E depois só
pagando para eles saírem”, conta um funcionário da empresa contratada pela
Norte Energia.
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